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Enem: direitos humanos são conteúdo de avaliação

6 de novembro, 2017

por Gabriela Rondon

Publicado originalmente no Jota

A primeira fase do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2017 foi realizada neste último domingo, 5 de novembro. A maior polêmica sobre a prova estava por todas partes nos dias que a antecederam: o debate judicial sobre a suspensão da regra do edital do exame que prevê a anulação da prova de redação, com nota zero, àqueles que desrespeitarem os direitos humanos em seus textos.A demanda foi provocada pela Associação Escola Sem Partido em ação civil pública cujo argumento era de que esse critério de avaliação feria as garantias constitucionais da livre manifestação do pensamento e da liberdade de consciência e de crença. Na peça, o ENEM é assumido especialmente como o mecanismo pelo qual estudantes pleiteam acesso ao ensino superior, e por isso a tese é resumida em que “ninguém pode ser obrigado a dizer o que não pensa para poder entrar numa universidade”. É verdade que a atribuição de nota zero pode ser questionável como medida pedagógica, mesmo para temas tão delicados, mas o debate se encaminhou para conclusões mais preocupantes, com a sugestão de que direitos humanos não pudessem fazer parte do conteúdo avaliativo de um texto argumentativo do exame.

Em primeira instância, o pedido foi negado. Já o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, embora não tenha desconhecido que o que chama de “conteúdo ideológico” possa ser avaliado e contar como elemento de correção, suspendeu o critério do edital por considerá-lo “punição pelo conteúdo de ideias”. Após recursos da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União ao Supremo Tribunal Federal, a ministra Carmen Lúcia decidiu, monocraticamente, manter a decisão do TRF-1, argumentando ainda que “há meios e modos para se questionar, administrativa ou judicialmente, eventuais excessos [nos textos dos estudantes]”. O que a decisão da ministra parece perder de vista é que os critérios de correção da prova são balizas pedagógicas sobre as competências e habilidades que estudantes devem ter sido capazes de adquirir depois de 12 anos de escolarização formal. Não se trata, ao menos não na correção da prova, de discutir responsabilização do estudante, no sentido jurídico, pelo discurso que emite, mas de considerar que direitos humanos são conteúdo de avaliação, assim como matemática, física e história.


Para outras dimensões do aprendizado, não consideramos que a existência desses critérios seja uma ofensa à liberdade de expressão ou uma punição a estudantes. Dificilmente seria possível anular uma questão de história sobre o holocausto sob o argumento de que fere a liberdade de expressão de quem acredita que o genocídio de judeus não aconteceu, ou de biologia, por adotar a perspectiva evolucionista e supostamente ferir a liberdade de crença de quem segue a perspectiva criacionista. Há consensos científicos baseados em evidências para orientar esses critérios, os quais podem e devem ser continuamente questionados e revisados dentro do próprio fazer diário da ciência, mas que, até que sejam efetivamente reconhecidos como refutados pela comunidade científica, continuam valendo como cânones. A estabilização desses cânones é fundamental para a produção e difusão do conhecimento, especialmente em fases de formação, como é o ciclo da educação básica finalizada no ensino médio. Parece haver razoável consenso sobre esse ponto.
Assim como para os outros conteúdos, para a avaliação em direitos humanos também há critérios, derivados dos compromissos constitucionais e de pactos internacionais de direitos humanos aos quais o país se vincula. O manual de redação do ENEM 2017 especifica que “determinadas ideias e ações serão sempre avaliadas como contrárias aos direitos humanos, tais como: defesa de tortura, mutilação, execução sumária e qualquer forma de “justiça com as próprias mãos”, isto é, sem a intervenção de instituições sociais devidamente autorizadas (o governo, as autoridades, as leis, por exemplo); incitação a qualquer tipo de violência motivada por questões de raça, etnia, gênero, credo, condição física, origem geográfica ou socioeconômica; explicitação de qualquer forma de discurso de ódio (voltado contra grupos sociais específicos).” É o que se espera como aprendizado básico nesse campo.

Se consideramos o que o nosso próprio marco constitucional e legal estabelece como princípios e fins da educação nacional, percebemos que o treinamento em torno aos conteúdos mínimos de cada área do conhecimento não é a única função da escola. A educação deve ter por objetivo “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, segundo o artigo 205 da Constituição Federal. É certo que, para isso, devem ser garantidos, como continuam os incisos do artigo 206, os princípios de “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e o “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”, desde que sempre lidos em conformidade com os objetivos primordiais já estabelecidos, entre eles o de preparar para o exercício da cidadania. Não há dúvidas de que a educação em direitos humanos é central para esse fim e, quando proposto como critério para a redação do ENEM, permite a avaliação de seu uso prático, de maneira transversal a outras habilidades e conhecimentos, exatamente a forma que se espera que a escola tenha preparado o estudante a fazer, em seu agir concreto no mundo.Em caso de correção equivocada, não só para a redação, mas para qualquer outra questão da prova, há sempre a possibilidade de se interpor recurso. Na redação, isso é especialmente importante para preservar justamente o direito ao livre pensamento e ao desenvolvimento crítico de argumentos como habilidades que devem ser incentivadas pela escola e pelo exame, desde que em respeito aos demais critérios. Mas o debate que se seguiu às decisões judiciais dos últimos dias não sinalizou apenas nesse sentido. Ao se abdicar de qualquer avaliação de conteúdo com base em parâmetros de direitos humanos, pode-se considerar que estes não são conteúdos mínimos sobre os quais se deva esperar a preparação de estudantes ao final da sua vida escolar. Mais que para o ENEM, esse é um sinal preocupante para o que assumimos como objetivos da educação no Brasil.

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