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Carta aberta a Rebeca Mendes, 1° a pedir autorização jurídica para abortar no Brasil

21 de dezembro, 2017

por Marcia Tiburi

Publicado originalmente na Revista Cult

Prezada Rebeca,

Há dias penso em escrever para você para agradecer por sua honestidade, por sua sinceridade, por sua coragem.

Acompanhei o seu caso de longe na torcida para que ele tivesse um desfecho justo, pensando no que você significa para as mulheres do Brasil nesse momento.

A desfaçatez, o cinismo, a hipocrisia e a maldade se elevam à Razão de Estado e aprofundam seus métodos desde o Golpe de 2016, e a sua posição contrária a tudo isso nos diz muito mais do que podem ver os que assumem posturas conservadoras em relação ao aborto.

Você sabe que a sua luta pessoal favorece a todas as mulheres. É importante que as mulheres saibam disso. Que a luta de cada uma é a luta de todas. Quero dizer com isso que você não está sozinha, nem nessa, nem em outras lutas. A sua coragem também nos faz saber que nós, as demais, não estamos sós.

Imagino que haja pessoas críticas em relação ao seu gesto e que você possa estar sofrendo com perseguições e maldades de todo tipo. No entanto, é à imensa rede de solidariedade à qual quero me unir ao escrever para você esta pequena carta afirmando que estou do seu lado.

E por falar em solidariedade, não tive grandes expectativas em relação à Ministra Rosa Weber quando do seu pedido ao STF, esse órgão que representa muito bem a miséria do judiciário brasileiro nos dias de hoje.

Lastimei, como todas nós, que ela estivesse do lado machista do poder. Mergulhada no machismo e aproveitando-se das pequenas vantagens pessoais que ele pode oferecer a uma mulher, é muito fácil para qualquer uma tornar-se inimiga de outras mulheres. Realmente é uma pena quando aquela que poderia ser a vítima da injustiça acaba por ajudar a perpetrá-la e perpetuá-la.

Nessas horas sempre penso nos capitães do mato e nos “kapos” dos campos de concentração nazistas que recebiam vantagens miseráveis, mas que representavam muito em contextos de desumanidade: um pedaço de pão seco, um sapato velho, ou a chance de ser menos espancado. Lembro de Primo Levi que sobreviveu a Auschwitz dizendo que, em um contexto de desumanidade total, já não podemos julgar esses algozes que também são vítimas.

Nada nos impede, no entanto, de sentir piedade pela miséria do espírito que está em jogo naquela atitude da pobre ministra. Ela foi a continuação da miséria do espírito que se formaliza na conspurcada PEC 181 que, como todas sabemos, foi transformada por um ato de astúcia em uma PEC criminalizadora do aborto.

Os famosos 18 deputados neofundamentalistas, machistas e fascistas foram parte da vergonha nacional que tivemos que amargar em 2018. Esses mistificadores da vida são a vergonha e fazem parte das piores cenas e mais ridículas cenas que tivemos nesse ano. No entanto, você, Rebeca, é o orgulho. Eles são a covardia, você é a nossa heroína, a grande personagem, a mulher–mãe-trabalhadora, que em 2017 nos fez ver além.

Pobre da ministra que se une aos seus algozes a não contribui em nada com os direitos das mulheres. E pobres das brasileiras que daqui em diante terão que viajar a cada vez que precisarem fazer um aborto, pois todas fazem, de todas as classes, raças e, como costuma frisar a grande Debora Diniz, de todas as religiões.

Lembro agora das minhas amigas evangélicas e católicas, pastoras e freiras que sofreram demais com seus abortos em nível físico e psicológico, penso que você as salva nesse momento, com seu ato de liberdade. Você salva a cada uma de nós que somos mães, mulheres e trabalhadoras e que fizemos abortos ou esperamos que ele seja legalizado por uma questão de democracia e justiça.

E enquanto penso, me entristeço de um ponto de vista feminista, humano e cidadão, pensando nas mulheres que não puderem viajar e correm o risco cada vez mais concreto de morrer à míngua assassinadas pelo Estado brasileiro.

Vivemos há tempos sob um Estado feminicida. Os coturnos dos nossos algozes que nos espancam, humilham e violentam não podem ser mais fortes do que nossa união e nossa capacidade de lutar.

Eu te abraço, Rebeca, retribuindo a solidariedade que você teve por todas nós.

E te desejo muitas felicidades e alegrias éticas e políticas no país adoecido pela indignidade ao qual você ofereceu a coragem como antídoto.

Marcia Tiburi

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