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“A mulher que aborta está na nossa família”

14 de dezembro, 2016

Autora da Pesquisa Nacional de Aborto 2016 e de livro sobre a epidemia de zika, Debora Diniz diz que é preciso mudar o debate sobre o tema no Brasil

por Tory Oliveira

Publicado originalmente na Carta Capital

 

Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras fez pelo menos um aborto. Somente em 2015, 503 mil mulheres interromperam a gestação no Brasil. São 1,3 mil abortos por dia, 57 por hora, quase um por minuto.

As estatísticas, captadas na Pesquisa Nacional de Aborto – 2016, revelam uma realidade muitas vezes subterrânea e silenciosa, mais presente do que se imagina. “A mulher que aborta está dentro da nossa família e na nossa vizinhança. Ela não é uma fantasia criada pelo debate moral”, afirma a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras do estudo e professora de Bioética na Universidade de Brasília.

A polêmica em torno da interrupção da gravidez voltou ao debate público por conta do voto de Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou que o aborto até os três meses não é crime, e da emergência da epidemia de zika, que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a recomendar que a opção pelo aborto seja liberada nesses casos.

Colunista no site de CartaCapital, Diniz também é um dos principais nomes quando se fala na epidemia de zika, responsável pela explosão estatística de crianças nascidas com microcefalia e outras complicações.

Debora Diniz
Debora Diniz é professora de Bioética na Universidade de Brasília e pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética

No Sertão nordestino, epicentro da doença, conviveu com a aflição de mulheres anônimas, médicos e cientistas. O resultado foi o livro Zika – Do Sertão nordestino à ameaça global (Civilização Brasileira). A antropóloga conversou com CartaCapital sobre zika e sobre os principais resultados da Pesquisa Nacional de Aborto:

CartaCapital: Qual é a expectativa para a sessão no Supremo Tribunal Federal que discutirá a possibilidade do aborto em caso de zika?

Debora Diniz: A nossa expectativa é que a sessão da semana passada [em que a Corte entendeu que o aborto até os três meses não é crime] tenha sido um prólogo de como o STF vai enfrentar essa matéria, sob uma perspectiva até mais simples de enfrentamento do que a descriminalização do aborto como um todo.

O pedido [para discutir o aborto em caso de zika] é movido por uma emergência humanitária, uma tragédia nunca vista no Brasil.

O pedido da interrupção da gestação no caso de zika tem uma comparação com o que já autorizamos em caso de estupro. Quando uma mulher fica grávida por uma situação de violência, nós reconhecemos que, para proteger sua saúde mental, sua integridade e seus direitos fundamentais, autorizamos que ela interrompa a gestação.

O pedido do zika é bastante semelhante. Não estamos falando da interrupção porque o feto tem algo, não é isso. É porque a mulher está em sofrimento mental dado o contexto de toda a epidemia, do silêncio que existe sobre o tema.

O que essa decisão [do STF], a luz do que os dados da Pesquisa Nacional de Aborto nos mostram é que o aborto é um fenômeno muito comum na vida das mulheres brasileiras. Um aborto por minuto.

CC: Por que é importante reforçar que a mulher que aborta é a “mulher comum” e que a prática é disseminada na sociedade?

DD: Ao afirmar e reconhecer que [a que aborta] é uma mulher comum, estamos dizendo que ela não é uma figura única, singular, diferente das outras mulheres.

Quando esse debate vai para o Congresso Nacional, fala-se do aborto como uma abstração. Mas, o que os números nos obrigam a mostrar é que aquela mulher que está dentro da nossa família, na nossa casa, na nossa vizinhança. É uma mulher comum. Ela não é uma fantasia criada pelo debate moral.

O segundo, que é um evento comum, tem duas implicações. Um que as mulheres sabem como fazer e se as pessoas querem, com a criminalização do aborto, diminuir o aborto ou sustentar a tese de que estão protegendo vidas.

Para aquela que querem proteger a vida potencial de um feto como elas acreditam ou reduzir o número de abortos, a única forma é descriminalizando o aborto, porque se consegue acessar essas mulheres e saber porque elas estão, em algum momento da vida, fazendo um aborto.

Quando o aborto é crime e ela faz na clandestinidade, o serviço de saúde não consegue acessá-la e conseguir trabalhar com ela para saber o que está dando errado para que ela tenha tentado fazer o aborto. Perde-se uma oportunidade de cuidado e de prevenção.

CC: Quando captada por pesquisas de opinião, a percepção é que a sociedade brasileira é contrária ao aborto: 79% são contra a legalização. Na sua opinião, por que o Brasil é tão contrário ao aborto? Quais as consequências desse posicionamento?

DD: Acho que há duas confusões aí. Isso é a confusão. Uma coisa é pesquisa de opinião, outras são práticas. O que a Pesquisa Nacional de Aborto nos mostra é quantas mulheres fazem o aborto.

Quando perguntamos para as pessoas qual é a opinião sobre algo, há a expectativa de uma resposta certa. Então, esses dados tão altos de contrários à descriminalização do aborto não representam as opiniões das pessoas sobre o que elas fazem, mas sobre o que elas acham que é a resposta certa.Então, comparar as duas coisas é um equívoco.

As pessoas respondem que elas são contra, mas elas fazem. Por que? Porque em um caso elas estão respondendo para o outro que está olhando para elas, na expectativa de que há uma resposta certa.

CC: A Associação Nacional dos Defensores Públicos encaminhou ao STF parecer favorável a possibilidade do aborto em grávidas contaminadas com zika. O Senado Federal manifestou-se contrariamente, dizendo que a “repulsa ao aborto está profundamente arraigada na cultura brasileira”. Na sua opinião, há chance do debate sobre os direitos reprodutivos mudar diante da epidemia da zika?

DD: É necessário que o debate mude. Se sempre foi urgente falar sobre o direito à interrupção da gestação, agora é ainda mais: temos uma epidemia em curso que torna a criminalização mais dramática para as mulheres em terrível sofrimento pelos incertos e severos efeitos do zika. Por isso, eu diria: sim, as chances são concretas, pois, pela primeira vez, vivemos com clareza a realidade de que proteger os direitos reprodutivos é proteger a saúde pública.

CC: Como relatou Ilana Löwy em artigo, os casos de mulheres que tinham filhos com complicações por conta da rubéola acabaram catalisando as discussões sobre a legalização do aborto no Reino Unido. Um dos fatores foi o convencimento da comunidade médica. Entre os médicos e médicas que a senhora conversou para produzir o livro, há posições favoráveis à opção de interrupção da gravidez nesses casos?

BB: Os médicos, assim como outras classes profissionais, não estão fora do mundo, e muitas vezes reproduzem padrões hegemônicos de moralidade. Mas sim, há muitos médicos no enfrentamento à epidemia do zika que estão sensibilizados ou são mesmo ativistas do direito à interrupção da gestação como uma proteção fundamental da saúde das mulheres.

CC:Para além da questão da síndrome congênita do zika, como você vê a discussão sobre a possibilidade do aborto como uma escolha da mulher?

DD: É uma absoluta necessidade de saúde das mulheres. Precisamos colocar as mulheres no centro do debate sobre a epidemia e no centro da conversa sobre interrupção da gestação. Transformar a escolha pelo aborto em um dilema – a vida da mulher ou a do feto, ou outras dublagens desse argumento – é ignorar que são as mulheres quem vivem a gravidez e cuidam das crianças.

 

CC: Hoje não há possibilidade de interrupção da gravidez e nem tratamento ou cura. O diagnóstico hoje é uma sentença para a mulher? Qual seria o amparo adequado que o poder público deveria oferecer?

DD: Assim é como as médicas de beira de leito no Sertão do país descrevem o momento do diagnóstico da síndrome neurológica do zika em fetos: como sentença para as mulheres.

O melhor amparo que o Estado pode dar às mulheres é a plena possibilidade de escolha, seja por interromper a gestação, com acesso a serviços seguros de saúde, seja por prosseguir e ter a certeza de que poderão contar com as políticas sociais necessárias e com acesso adequado ao cuidado em saúde para seus futuros filhos com deficiência.

E aqui há algo de importante a ser destacado: não sabemos qual a taxa de risco de uma mulher infectada pelo vírus zika ter seu futuro filho com alterações congênitas. Por isso, não falamos que a interrupção da gestação deve ser um direito porque algo acontecerá com o feto, mas porque a saúde mental da mulher está ameaçada, da mesma forma como acontece com a tragédia de um estupro.

CC: No epicentro da crise da zika estão hoje mulheres nordestinas do Alto Sertão. Na sua opinião, o perfil delas contribui para o apagamento do assunto nos meios de comunicação?

DD: Certamente. Essas mulheres não se tornaram anônimas ao poder por ocasião da epidemia. Elas sempre foram anônimas, esquecidas pelas políticas públicas. O fato de que sejam as vítimas principais dessa tragédia de saúde pública faz com que seu regime de desproteção apenas se aprofunde – e a ausência do debate sobre a epidemia nos meios de comunicação é um sintoma disso.

É preciso descrevê-las corretamente: elas são nordestinas, pretas e pardas, anônimas e pobres. Não são as elites urbanas que terceirizam o cuidado das crianças ou se locomovem com carros privados ou motoristas. Cada detalhe da tragédia da epidemia as impacta de forma particular, mas os noticiários não contam suas histórias.

CC: Na sua opinião, quais seriam as políticas públicas de saúde adequadas para o enfrentamento desta crise?

DD: Todas as que são pedidas na ação protocolada ao Supremo Tribunal Federal pela Associação Nacional dos Defensores Públicos: desde o acesso adequado a contraceptivos de reconhecida eficácia, para aquelas que não desejarem engravidar em tempos de epidemia, passando por acesso ao repelente, para aquelas que desejem seguir com seus planos reprodutivos, incluindo ainda o direito à interrupção da gravidez para aquelas que assim o desejarem e, para as milhares de mulheres que já têm ou terão filhos com a síndrome congênita, acesso aos serviços de saúde para estimulação precoce em um raio de 50 km da residência, ou transporte para distâncias mais longas.

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